A serpente e a lima

Certo relojoeiro 
Duma serpente a vizinhança tinha. 
(Que péssima vizinha!) 
O réptil, sorrateiro, 
Entra-lhe a loja, em busca de guisado, 
E à mão só vê, para matar a fome, 
Lima d'aço, bem rijo e temperado. 
Morde-a, e, qual avestruz, quer ver si a come. 
A lima então, sem cólera falando 
Diz-lhe: "estulta pareces, 
Deste modo atacando 
Aquilo que conheces 
Ser mais rijo que tu. Antes que possa 
Teu esforço um ceitil me destacar; 
Antes que eu sofra a mais ligeira móssa, 
Has de as presas quebrar. 
Pascacia! Eu temo só do tempo os dentes, 
E não os das serpentes." 
Isto que eu disse aqui, leva endereço 
Aos espíritos vis que tudo investem. 
Bem que, tacanhos, para nada prestem, 
Tudo mordem; têm tudo em menosprezo. 
Quererdes (parvos!) amolgar co'as presas 
Produções imortais do engenho humano, 
É vão esforço insano, 
A mais louca e irrisória das empresas! 
Vossa fúria espumante 
Nem a mais leve brecha lhes imprime; 
Pois todas têm a têmpera sublime 
Do aço fino, do bronze e diamante.

Jean de La Fontaine

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