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O que nos conta o vento

O vento é tão alegre como uma criança. Já o viram correr, pelos campos, movendo o trigo, como as ondas do mar? É isto a dança do vento; mas ele não só dança, também canta. Vão ouvir como ele canta. 
- Zum!... Zu!... Zê, ss... Ss... Ss!... - está ele dizendo. 
Se não houvesse uns senhores muito graves, que usam chapéus que rodam pelas ruas, a vida na cidade seria para mim grande aborrecimento. Todas as distrações fugiram das cidades. Há cem anos não havia nada de que eu mais gostasse do que ir soprando pelas ruas abaixo. Mas, então, as ruas eram uma exposição de quadros divertidos, mais que lugares de comércio. 
Todas as casas tinham sua vitrina ou tabuleta. Havia a vitrina do alfaiate, cheia de figurinos de várias cores, querendo mostrar que o alfaiate era capaz de transformar o homem mais esfarrapado num elegante senhor. 
O barbeiro tinha por cima da porta um grande pau com uma navalha de madeira pendurada; peixes, chapéus, queijos, bolas, enfim, todas as coisas que se vendiam na cidade, eram representadas nas tabuletas; e quando eu as fazia oscilar e as punha a bater umas contra as outras, produziam um barulho ensurdecedor. 
Que momentos tão alegres e divertidos passei eu numa noite em que me meti pelos mostradores! Tinha jurado que me havia de divertir. 
O vento calou-se, dando em seguida um grito que estremeceu a casa. 
- Oh! Como me lembro bem! - continuou ele a gritar pela varanda. 
- Era num dia em que os sapateiros se mudavam do antigo estabelecimento para o novo, levando consigo todas as tabuletas. Naqueles tempos, que já vão bem longe, os sapateiros eram ricos e poderosos e valia a pena ver a procissão que eles formavam. 
Havia um palhaço que abria a marcha, uma figura grotesca com a cara negra e uma roupa feita de retalhos. Todos riam. Hoje já não se divertem desta maneira. Atrás do palhaço ia a música, seguida dos homens que levavam os estandartes, e a grande bandeira de seda do grêmio dos sapateiros, enfeitada com uma grande bota preta. 
Subiu a um andaime, no qual tinha que fixar uma tabuleta, o sapateiro que presidia a associação e começou a discursar; mas o palhaço, que subiu atrás dele, fazia rir às gargalhadas o público, com os seus trejeitos. 
Eu quis também tomar parte na brincadeira e comecei a bater com as tabuletas umas nas outras e o orador desceu dizendo: 
"Não é possível fazer-me ouvir por causa do vento, mas vamos fixar a tabuleta." 
Mas eu havia resolvido - continuou o vento - que a tabuleta não se fixasse. Soprei até que o avental do sapateiro lhe tapasse os olhos; fiz cair a escada e levei-lhe o chapéu e a cabeleira. Por fim cansaram-se de lutar comigo e foram-se todos para a sua nova casa para celebrarem o banquete. 
O vento deu um salto e prosseguiu: 
- Eu estava naquele dia disposto a fazer mal. 
Tenho conseguido divertir-me com os sapateiros, andava pelas ruas tentando novas proezas. Comecei a tirar os tetos das casas velhas, mas ainda sentia vontade de fazer pior. Continuei a fazer cirandar tudo com muita habilidade. Quando a gente da cidade despertou, no dia seguinte, encontrou a tabuleta do Instituto Histórico num salão de bilhares e o Instituto tinha lá, em troca, a tabuleta arrancada de um asilo para crianças... Havia criadas e mamadeiras... Um peleiro tinha pintado na tabuleta uma raposa. 
Mudei a tabuleta para o outro lado da rua, para a casa de um conselheiro avarento, que pretendia passar por excelente pessoa. 
Toda a população se riu, sobretudo quando viu a tabuleta que eu tinha posto na casa de um juiz: era um pau com uma navalha de madeira. A mulher do juiz tinha o apelido de "A Navalha", por sua má língua. 
Mas a partida mais original - continuou o vento com voz baixa - foi a que preguei a uma rica mulher que inventava grandes histórias contra os seus vizinhos. Pus na casa dela um letreiro que havia num solar abandonado e que dizia: 
"Aqui precisa-me de estrume." 
Foram dias alegres - suspirou o vento - mas que já não voltam. Depois do que eu fiz nunca mais usaram aquelas tabuletas; por minha causa muitos se envergonharam do seu comportamento e muitos homens nem queriam ouvir falar de mim e nas minhas travessuras. 
O vento acabou de falar na varanda e, dando um grito muito agudo, foi-se embora.

Hans Christian Andersen
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O caracol e a roseira

Em volta do jardim havia um bosque de avelãs e mais adiante se estendiam os campos e os prados, nos quais havia vacas e ovelhas; porém no meio do jardim havia uma roseira em plena floração. A seus pés estava um caracol, o qual valia muito, segundo a sua própria opinião. 
- Espere que chegue o meu tempo dizia - farei muito mais do que dar rosas, avelãs ou leite, como as vacas ou ovos como as galinhas. 
- Espero muito de você - respondeu a Roseira - poderei saber quando veremos essas maravilhas que tanto anuncia? 
- Levarei para isso o tempo que achar necessário - replicou o Caracol - você sempre tem tanta pressa em seu trabalho, que não chega a despertar a curiosidade de ninguém. 
No ano seguinte, o Caracol estava quase no mesmo lugar de antes, isto é, ao Sol e ao pé da Roseira; esta estava cheia de botões, que começavam a abrir-se, mostrando umas rosas magníficas, sempre viçosas e novas. E o Caracol, mostrando meio corpo para fora da concha, esticou seus tentáculos e os encolheu novamente, para voltar a esconder-se. 
- Tudo tem o mesmo aspecto do ano passado. Não se vê o mínimo progresso em nenhum lugar. A Roseira está coberta de rosas... Mas nunca fará nada de novo. 
Passou-se o verão e logo após o outono; A Roseira dera rosas lindas, até que começaram a cair os primeiros flocos de neve. 
O tempo ficou úmido e tempestuoso e a Roseira se inclinou até o solo, enquanto o Caracol se escondia dentro da terra. 
Começou novo ano e a Roseira reviveu. O Caracol também apareceu. 
- Você já é uma roseira velha - disse o Caracol - de forma que logo secará. Você já deu ao mundo tudo o que havia dentro de si. E se isso valeu alguma coisa, é assunto que não tenho tempo de examinar; mas o certo é que você não fez nada para o seu aperfeiçoamento, senão teria produzido algo diferente. Pode negá-lo? E agora você se converterá numa vara seca e desnuda. Entende o que digo? 
- Está me alarmando - exclamou a Roseira - nunca pensei nisso. Jamais imaginei o que está dizendo. 
- Não, você não se preocupou muito em pensar em algo. Porém, nunca pensou em averiguar a razão de sua floração, por que você produz flores? E por que motivo o fazia sempre de forma igual? 
- Não - replicou a Roseira - dei flores com a maior alegria, porque não podia fazer outra coisa. O Sol era tão quente e o ar tão bom!... Eu bebia o orvalho e a chuva; respirava... E vivia. Logo me chegava novo vigor da terra, assim como do céu. Experimentava um certo prazer, sempre novo e maior, e era obrigada a florescer. Tal era a minha vida, não poderia fazer outra coisa. 
- Você sempre levou uma vida muito cômoda - observou o Caracol. 
- Na realidade, sinto-me muito favorecida - disse a Roseira - e, de agora em diante, não vou possuir tantos bens. Você possui uma dessas mentes inquiridoras e profundas e de tal maneira é bem dotado, que não duvido de que assombrará o mundo sem demora. 
- Não tenho tal propósito - replicou o Caracol - o mundo não é nada para mim. Que tenho a ver com ele? Já tenho muito o que fazer comigo mesmo. 
- Em todo caso, não temos o dever, na terra, de fazer o que pudermos pelo bem dos demais e de contribuir para o bem comum com todas as nossas forças? Que foi que você já deu ao mundo? 
- Que foi que eu dei? Que lhe darei? Pouco me importa o mundo. Produza as suas rosas, porque sabe que não pode fazer outra coisa; que as avelãs dêem avelãs e as vacas leite. Cada um de vocês possui um público especial; eu tenho o meu, dentro de mim mesmo. Vou entrar dentro de mim e permanecer aqui. O mundo para mim não é nada e não me oferece o mínimo interesse. 
E assim o Caracol entrou em sua casa e se fechou. 
- Que lástima! - exclamou a Roseira - não posso colocar-me num lugar abrigado, por mais que o deseje. Sempre tenho que dar rosas e mudas de roseira. As folhas caem ou são arrastadas pelo vento e o mesmo acontece com as pétalas das flores. 
Em todo o caso, eu vi uma das rosas entre as páginas do livro de orações da dona da casa; outra de minhas rosas foi colocada no peito de uma jovenzinha muito formosa, e outra, enfim, recebeu um beijo dos lábios suaves de um menino, que se entusiasmou ao vê-la. Tudo isso me encheu de felicidade e será uma das recordações mais gratas de toda a minha vida. 
E a Roseira continuou florescendo com a maior inocência, enquanto que o Caracol continuava retirado dentro da sua viscosa casa. Para ele o mundo não valia nada. 
Passaram-se os anos. O Caracol voltou para a terra e a Roseira também; do mesmo modo a rosa seca no livro de orações já desaparecera, mas no jardim floresciam novas rosas e também havia novos caracóis; e se escondiam dentro de suas casas, sem se incomodarem com os outros porque para eles o mundo não representava nada. Teremos que contar também a história deles. Não, porque, no fundo, não se diferenciariam nada daquilo que já contamos.

Hans Christian Andersen
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O Pinheirinho

No coração da floresta, num recanto bucólico, onde não faltava Sol e ar, vicejava um elegante pinheirinho. Erguiam-se ao seu redor muitos companheiros maiores, pinheiros e abetos, e ele o que mais vivamente desejava era crescer. Não pensava no Sol quente nem no ar fresco, não se importava com os filhos dos camponeses nem com sua conversa infantil, quando passavam para colher morangos e framboesas. Muitas vezes vinham com as vasilhas cheias de frutos ou traziam morangos espetados em colmos; sentavam-se ao lado do pinheirinho e o admiravam. 
"Que arvorezinha bonita!" - diziam. 
Mas a árvore nem queria ouvir aquilo. 
Passado um ano, aumentara em altura, com um longo gomo novo; um ano depois, crescera-lhe outro gomo, ainda maior. Nos pinheiros podem-se contar pelos gomos quantos anos eles têm. 
- Ai, quem me dera ser uma árvore grande, como as outras! - suspirava o Pinheirinho - ai se eu pudesse espalhar meus galhos e contemplar com a minha copa o vasto mundo. Os pássaros viriam construir seu ninho em meus ramos, e com o vento eu poderia menear a cabeça de modo tão imponente como as outras árvores... 
Nada lhe causava prazer, nem o Sol nem os pássaros, nem as nuvens vermelhas que, pela manhã e à noitinha, passavam por cima dele. 
No inverno, quando a neve alvejava por toda a parte, ao redor dele, era comum as lebres virem correndo aos saltos, e passarem, de um pulo, por cima do pinheirinho. Como aquilo o enchia de raiva! Dois invernos se passaram e, no terceiro, ele já era tão grande que as lebres tinham de contorná-lo. Crescer, crescer, ser grande e velho, era a única coisa boa que havia neste mundo, pensava a árvore, era seu supremo anseio. 
Pelo outono sempre vinham os lenhadores e derrubavam algumas das árvores maiores. Isso acontecia todos os anos, e o jovem Pinheirinho, já de bom tamanho, tremia ao ver as grandes e magníficas árvores tombarem por terra, com um grande baque. Os galhos eram decepados, as árvores jaziam depois nuas, compridas e finas, quase irreconhecíveis. Eram colocadas em carroções, e os cavalos as puxavam para fora da mata. 
Para onde iriam? O que as esperava? 
Na primavera, quando chegaram as andorinhas e a cegonha, o Pinheirinho lhes perguntou: 
- Não sabeis, por acaso, para onde as árvores foram levadas? Não as encontrastes? 
As andorinhas nada souberam dizer, mas a Cegonha refletiu, sacudiu a cabeça e disse por fim: 
- Creio que sim. Encontrei muitos navios novos, quando parti do Egito. Nos navios havia soberbos mastros. Creio quase poder dizer que eram elas, pois tinham o aroma do pinheiro. Trago muitas, muitas lembranças delas. Elas vão bem, erguem a cabeça, altivas. 
- Ah! Tomara que eu já seja bastante grande para andar sobre o mar. Como é, afinal de contas, esse mar? A que se assemelha ele? 
- Isso é muito complicado de se explicar - disse a Cegonha. 
E foi-se embora. 
- Alegra-te com tua juventude - disseram os Raios do Sol - alegra-te com teu viço, com a vida jovem que tens dentro de ti! 
O Vento beijou o Pinheirinho, o Orvalho chorou lágrimas sobre ele, mas nada disso ele compreendia. 
Pela época do Natal, eram derrubadas árvores novas, algumas até menores ou de menos idade que a do irriquieto Pinheirinho, que não tinha paz de espírito, que sempre sonhava sair do lugar onde estava. Essas jovens árvores, sempre as mais bonitas, conservavam os seus galhos, e eram deitadas nas carroças, que os cavalos puxavam para fora da mata. 
- Para onde irão? - perguntou o Pinheirinho - não são maiores do que eu. Havia até uma que era bem menor. Por que ficam com todos os galhos? Para onde são levadas? 
- Nós sabemos! Nós sabemos! - gorjearam os Pardais - lá embaixo, na cidade, espiamos através das vidraças. Sabemos para onde elas vão. Elas terão o maior brilho e esplendor que se pode imaginar. Olhamos pelas janelas e vimos que elas são plantadas no meio da sala, num lugar aconchegante, e enfeitadas com as coisas mais lindas: maçãs douradas, bolos de mel, brinquedos e muitas centenas de velas acesas. 
- E depois? - perguntou o Pinheirinho, tremendo todos os ramos - e depois? Que acontece depois? 
- Bem... Mais nós não vimos. Era, porém, uma beleza! 
Será que também me espera esse brilhante destino? - exultou a árvore - é melhor ainda que andar por cima do mar. Sofro tanto de saudades! Tomara que já fosse Natal! Agora sou alta, crescida como as outras, que foram levadas no ano passado. Quem me dera já estar em cima do carro! Estar na sala aquecida, com toda beleza e esplendor... E depois? Depois deve vir alguma coisa ainda melhor, ainda mais bonita. Por que então haveriam de enfeitar-me assim? Deve vir alguma coisa ainda mais grandiosa, ainda mais brilhante. Nem mesmo eu sei o que há comigo... 
- Alegra-te conosco! - disseram o Ar e a Luz do Sol - alegra-te por seres jovem e viveres cá fora, ao ar livre! 
Mas a arvorezinha não se alegrava. Crescia, crescia sempre. Era verde no inverno e no verão, verde escura, a cor do viço. 
"Que bela árvore" - comentavam todos que a viam na mata. 
Ao aproximar-se o Natal, foi a primeira a ser derrubada. Num talho profundo, o machado cortou-lhe o caule. Com um gemido, a árvore caiu por terra. Sentiu uma dor aguda, um desfalecimento, nem pôde pensar em qualquer felicidade futura. Estava triste por ter de afastar-se do recanto onde nascera, pois sabia que nunca mais iria ver os velhos e queridos camaradas, os arbustos e flores que estavam em seu redor, talvez nem os pássaros. A partida nada teve de agradável. 
A árvore só voltou a si num quintal, onde foi descarregada, com outras árvores, ao ouvir um homem dizer: 
- Está é muito bonita. Basta esta. Não precisamos de outras. 
Vieram dois criados em uniforme de gala, e carregaram o Pinheirinho para o interior de uma grande e luxuosa sala. Pelas paredes pendiam retratos, e na lareira de azulejos viam-se grandes vasos chineses, com leões na tampa. Havia cadeiras de balanço, sofás estofados de seda, amplas mesas cheias de livros de figuras e brinquedos, no valor de centenas e centenas de tálers. Pelo menos era o que diziam as crianças. O Pinheirinho foi posto de pé num grande vaso cheio de areia, mas não dava para ver que era um vaso, pois foi ele revestido de pano verde, em toda a superfície, e colocado sobre um enorme tapete colorido. Como a árvore tremia! O que estaria para vir? O que a aguardava? 
Os criados e as moças da casa a enfeitaram. Nos ramos penduraram saquinhos recortados de papel colorido, cheios de bombons. Maçãs e nozes douradas pendiam dos ramos, como se fossem frutos da árvore. E mais de cem velinhas, vermelhas, azuis e brancas, foram fixadas em todos os galhos. Bonecas, que pareciam vivas, como gente de verdade - a árvore nunca vira antes bonecas assim - espiavam dentre os ramos verdes, e bem no topo foi colocada uma grande estrêla dourada. Era magnífico, esplendido. 
- Hoje à noite - disseram todos - o Pinheirinho vai brilhar. 
- Tomara que já anoiteça - disse a árvore - e que as luzes não tardem a acender-se! O que acontecerá então? Virão árvores da mata para ver-me? Os pardais virão espiar junto a vidraça? Crescerei aqui com raízes? E passarei enfeitada o verão e o inverno? 
Que sabia ela? A casca doía-lhe de saudades, e dor de casca numa árvore é tão incômoda como a dor de cabeça para nós. 
As velas foram acesas. Que brilho, que esplendor! A árvore tremia todos os galhos. De tanto tremer, uma das velas incendiou um ramo verde. 
- Deus nos acuda! - gritaram as moças. 
E depressa apagaram o fogo. 
A árvore não se atreveu mais a tremer. Era horrível. Tinha medo de estragar os seus enfeites. 
E ficou toda aturdida em meio àquele esplendor. De súbito, a porta se abriu e um bando de crianças precipitou-se pela sala adentro, como se quisessem botar abaixo a árvore. Os adultos vieram atrás, mas vinham devagar. As crianças ficaram um momento em silêncio. Mas, de repente, recomeçaram as demonstrações de jubilo, que reboavam por toda a casa. Dançaram ao redor da árvore, e um presente depois do outro foi colhido dos seus ramos. 
"Que será que estão fazendo!" - dizia a árvore - "que irá acontecer?" 
As velas arderam até chegarem aos ramos, e, à medida que iam se consumindo, eram apagadas. Por fim, as crianças obtiveram permissão de tirar todos os enfeites da árvore. Atiraram-se a ela com ímpeto. Os ramos estalaram, e se ela não estivesse presa ao teto pela estrêla dourada do topo, teria tombado. 
As crianças dançaram ao redor, com os brinquedos e presentes nas mãos. Ninguém mais olhava para a árvore. Só a velha ama-seca remexia ainda entre os ramos, mas só para ver se lá não haviam esquecido um figo ou uma maçã. 
- Uma história! Uma história - clamaram as crianças, e puxaram em direção à árvore um homenzinho gordo, que acabou por sentar-se bem embaixo dela. 
- Assim é como se estivéssemos em pleno verdor da mata - disse ele - e também a árvore aproveitará para ouvir. Mas contarei uma única história. Uma só! Querem ouvir a de "Ivete-Avede" ou a de "Sem-Jeito, que rolou pelas escadas abaixo e, apesar disso, alcançou o trono e casou-se com a princesa?" 
- "Ivede-Avede!" - gritaram uns - "Sem-Jeito!" - gritaram outros. 
Houve verdadeira gritaria, e só o Pinheiro manteve-se mudo, pensando: 
"Na verdade, não tomarei parte nisso; nem mesmo nada farei" - pensava. 
Ele já tomara parte no que devia tomar, já fizera o que tinha de fazer. 
O homem propôs a história de "Sem-Jeito, que rolou pelas escadas abaixo e, apesar disso, alcançou o trono e casou-se com a princesa." 
- Conta! - gritaram as crianças, batendo palmas - conta! 
Queriam ouvir também a história de "Ivete-Avede", mas o homem só contou a de "Sem-Jeito". 
O Pinheirinho ficou calado e pensativo. Nunca os pássaros, lá fora, na mata, haviam contado coisas assim. "Sem-Jeito rolou pelas escadas e, apesar disso, casou-se com a princesa..." - pensou o Pinheirinho. 
Era isso mesmo, assim era o mundo... O Pinheirinho acreditava que a história fosse verdadeira, por ser tão simpático o homem que a contava. É... Nunca se pode saber! Também eu posso cair pelas escadas abaixo e casar-me com uma princesa. E o Pinheirinho pensou com alegria no dia seguinte, quando, acreditava, seria de novo enfeitado com luzes e brinquedos, ouro e frutas. 
"Amanhã não hei de tremer" - decidiu - "hei de sentir sincero prazer com todo o meu esplendor. Amanhã tornarei a ouvir a história de 'Sem-Jeito' e talvez a de 'Ivete-Avede'." 
E a árvore passou toda a noite muda e pensativa. 
Pela manhã entraram o empregado e a criada. 
"A festa vai começar de novo" - supôs a árvore. 
Em vez disso, porém, carregaram-na para fora da sala, escadas acima, até o sótão. 
"Que quererá dizer isso?" - pensou a árvore - "que terei eu vindo fazer aqui? Que irei ouvir?" 
Encostou-se à parede, pensando, pensando sempre. 
Teve tempo de sobra para pensar. Sucederam-se os dias e as noites, sem que alguém subisse até lá. 
Quando, finalmente, apareceu uma pessoa, foi para colocar num canto umas grandes caixas. A árvore ficou escondida. Devia-se crer que fora completamente esquecida. 
"Agora é inverno lá fora" - pensou a árvore - "a terra está dura e coberta de neve. O homem não pode plantar-me. Deve ser por isso que terei de ficar abrigada aqui até a primavera. Bem imaginado isso! Como são bons os homens... Melhor seria se aqui não fosse tão escuro e tão horrivelmente solitário. Por aqui não passa sequer uma pequena lebre. Como era divertido lá na mata, quando a neve tudo cobria e a lebre vinha correndo, aos saltos. Era bom até quando saltava por cima de mim. Eu é que naquele tempo não o soube apreciar. Aqui em cima a solidão é tão triste..." 
- Qui-qui-qui! - disse um pequenino Camundongo, aparecendo naquele momento, logo seguido por outro. 

Farejaram a árvore e saltitaram entre seus ramos. 
- Faz um frio tremendo! - disseram os camundongos - se não fosse isso, aqui seria ótimo! Não achas, velho Pinheiro? 
- Não sou nada velho - respondeu o Pinheirinho - há tantos muito mais velhos do que eu... 
- De onde vens? - perguntaram os camundongos - e o que sabes? - eram de uma curiosidade irresistível - conta-nos a respeito do lugar mais lindo da terra, se é que lá estiveste. Estiveste na despensa, onde há queijos nas prateleiras e presuntos dependurados no teto, onde se dança em velas de sebo, onde se entra magro e se sai gordo? 
- Não conheço esse lugar - disse a Árvore - mas conheço a mata, onde brilha o Sol e cantam os pássaros. 
E o Pinheirinho contou-lhes toda a história de sua juventude. Os camundongos nunca tinham ouvido antes falar em coisas assim, e escutaram, atentos. 
- Quanta coisa viste! - disseram - como foste feliz! 
- Eu, feliz... - disse o Pinheirinho. Mas refletiu sobre o que ele mesmo acabara de contar e acrescentou: 
- Sim, sim... Pensando bem, foram bons tempos aqueles... - e passou a falar da noite de Natal, quando fora enfeitado com balas e velas. 
- Oh! - exclamaram os camundongos - como foste feliz, velho Pinheiro! 
- Não sou nada velho - repetiu o Pinheirinho - foi neste inverno que vim da mata. Estou na melhor idade; apenas comecei a crescer. 
- Como sabes contar bem! - disseram os camundongos. 
Na noite seguinte voltaram trazendo em sua companhia mais quatro pequenos camundongos, para que ouvissem a árvore contar a sua história. 
Quanto mais ela contava, tanto mais nitidamente se recordava de tudo e pensava: 
"Eram tempos bem felizes aqueles... Mas os bons tempos podem voltar, por que não? Sem-Jeito caiu da escada e, apesar disso, casou-se com a princesa. Talvez também eu possa vir a desposar uma princesa." - e o Pinheirinho lembrou-se de uma pequena e graciosa bétula que crescia na mata, e que parecia uma verdadeira princesa 
- Quem é Sem-Jeito? - perguntaram os camundongos. 
O Pinheirinho contou toda a fábula. Lembrava-se de cada palavra. Os camundongos acharam tanta graça que estavam a ponto de pular até o topo da árvore. 
Na noite seguinte, vieram muitos camundongos; e, no domingo, até dois ratos. Eles disseram que a história não era engraçada, o que entristeceu os pequenos camundongos, que daí por diante também gostaram menos dela. 
- O sr. só conhece essa única história? - perguntaram os ratos. 
- Só essa - respondeu a Árvore - ouvi-a na minha noite mais linda, mas não pensei então quanto eu era feliz. 
- É uma história muito sem graça. Não conhece nenhuma em que entrem toucinho e velas de sebo? Nenhuma história que se passe numa despensa? 
- Nenhuma! - disse a Árvore. 
- Então, muito obrigado! - disseram os ratos, e foram cuidar da vida. 
Por fim, também os camundongos não apareceram mais, e a árvore suspirou entristecida. 
"Era tão bom quando os camundongos me rodeavam para ouvir a minha história. Agora também isso acabou. Mas tratarei de me divertir quando me tirarem outra vez daqui." 
Mas, quando seria isso? 
Finalmente, porém, chegou o dia. Pela manhã, bem cedo, subiu gente ao sótão, e remexeram entre os velhos trastes ali amontoados. Os caixotes foram mudados de lugar, a Árvore foi retirada. Jogaram-na sem cuidado ao chão, e logo um homem pegou-a e a arrastou em direção à escada, onde brilhava a luz do dia. 
"Agora a vida começa de novo" - pensou a Árvore. 
Sentiu o ar fresco, o primeiro raio de Sol e, um instante depois, estava fora, no quintal. Tudo se passou tão depressa que a Árvore se esqueceu até de olhar para si mesma, pois havia muita coisa a ver ali. O quintal limitava-se com um jardim, onde tudo estava em flor. As rosas pendiam, frescas e perfumadas, por cima da grade. As tílias floresciam e as andorinhas voavam em redor delas, sem ligarem para o Pinheiro. 
- Agora hei de viver! - exultou, porém, o Pinheirinho, abrindo largamente os galhos. 
Coitados, estavam todos murchos e amarelos. E ele estava deitado a um canto, entre urtigas e ervas daninhas. Ainda ostentava na ponta a estrêla de papel dourado, que brilhava aos raios do Sol. 
No quintal brincavam algumas das crianças alegres que na noite de Natal haviam dançado ao redor da Árvore e se divertido muito. Uma das menores aproximou-se e arrancou a estrêla de ouro. 
- Olhem o que ainda está nesta velha e feia árvore de Natal! - disse ele, e pisou nos galhos, que estalaram sob suas botinas. 
A Árvore viu toda aquela profusão de flores e plantas viçosas no jardim, e viu a si mesma. Desejou ter ficado em seu canto escuro, no sótão. Recordou sua juventude na mata, a alegre noite de Natal, e os camundongos, que com tanto prazer tinham escutado a história de Sem-Jeito. 
- Acabou-se... Acabou-se tudo... - disse a pobre Árvore - quem me dera ter me divertido enquanto ainda era tempo! Agora tudo está acabado... 
Chegou o criado e picou a árvore em pedacinhos. Deu um bom feixe de lenha, que ardeu em vivas chamas, sob um grande tacho. A Árvore gemeu profundamente, e cada gemido dela era como um pequeno estalo. Ouvindo os estalos, as crianças que brincavam na rua vieram correndo e sentaram-se em frente ao fogo. 
- Pum! Pum! - exclamavam a cada estalo. 
A Árvore, porém, a cada gemido, pensava num dia de verão na mata, numa noite de inverno lá fora, quando as estrêlas brilhavam, pensava na noite de Natal e em Sem-Jeito, única história que ouvira e soubera contar. Um momento depois o fogo a devorou por completo. 
Os meninos brincavam no quintal e o menor deles colocou no peito a estrêla de ouro que a Árvore ostentara em sua noite mais feliz. A noite findara-se, acabara-se tudo, toda a ventura e a própria Árvore, e também a história aqui se acaba, como se acabam todas as histórias.

Hans Christian Andersen
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Os namorados


O Pião e a Bola achavam-se numa gaveta, junto com outros brinquedos, e o Pião disse a Bola:
- Não vamos ser namorados, já que estamos juntos na mesma gaveta?
A Bola, porém, feita de marroquim, e tão vaidosa como uma senhorita elegante, nem resposta quis dar a semelhante pergunta.
No dia seguinte, veio o menino, dono dos brinquedos. Pintou o Pião de vermelho e amarelo, e pregou-lhe bem no centro um prego de latão. Era muito bonito quando o Pião girava.
- Olhe para mim - disse o Pião à Bola - que diz você agora? Não vamos então ser namorados? Servimos muito bem um para o outro: você pula e eu danço. Ninguém poderá ser mais feliz que nós dois.
- É o que o senhor pensa - disse a Bola - certamente não sabe que meu pai e minha mãe foram chinelos de marroquim, e que tenho dentro de mim uma cortiça.
- E eu sou feito de mogno - disse o Pião - o próprio prefeito me torneou em seu torno, o que lhe deu um grande prazer.
- Se eu pudesse acreditar nisso! - disse a Bola.
- Quero nunca mais ver uma fieira em toda a minha vida se for mentira o que eu disse - respondeu o Pião.
O senhor advoga bem a própria causa - disse a Bola - mas não posso namorar. Estou quase comprometida com um sr. Andorinha. Cada vez que subo ao espaço, ele põe a cabeça fora do ninho e pergunta:
"Quer? Quer?"
Ora, eu intimamente já disse que sim, o que equivale a um meio compromisso. Mas lhe prometo que nunca o esquecerei!
- E isso vai adiantar muito! - disse o Pião.
E nada mais disseram.
No dia seguinte vieram buscar a Bola. O Pião viu como ela subia a grande altura, como um pássaro, desaparecendo de vista. Voltava todas as vezes, mas dava um grande salto cada vez que tocava o chão. Devia ser por causa das saudades, ou por causa da cortiça que ela tinha dentro dela. A nona vez a Bola subiu ao alto, e não mais voltou. O menino procurou muito, e nada: a Bola sumira.
- Bem sei onde ela está - suspirou o Pião - está no ninho do sr. Andorinha e com ele se casou.
Quanto mais o Pião pensava naquilo, tanto mais se apaixonava pela Bola. Por não poder tê-la, seu amor por ela aumentava. O fato de ter ela ficado com outro, tornava o caso mais apaixonante. O Pião dançava ao redor e zunia, mas sempre pensava na Bola, que em seus pensamentos se foi tornando cada vez mais bonita. Passaram-se assim muitos anos e o amor do Pião transformou-se num velho sonho.
O Pião não era mais moço. Um dia, porém, foi inteiramente pintado de dourado. Nunca fora antes tão bonito. Era agora um Pião de Ouro, e pulava, deixando um zunido pairando no ar. Aquilo sim, era formidável! Mas de repente ele saltou alto demais - e sumiu.
Procuraram por toda a parte, até na adega, mas nada de aparecer o Pião.
- Onde estaria ele?
Pulara para dentro da barrica de lixo, onde jaziam amontoados talos de couve, cisco e entulho caído da calha.
"Estou bem arrumado" - pensou o Pião - "aqui a douração não tardará a sair de mim. E que gentalha é essa em cujo meio vim parar!" 
Olhou de esguelha para um longo talo de couve e para um estranho objeto redondo, que parecia uma maçã velha. Mas não era uma maçã. Era uma velha Bola que durante muitos anos estivera caída na calha, embebida de água.
- Graças a Deus, aí vem alguém com quem se pode falar - disse a Bola ao ver o Pião Dourado - eu, para falar a verdade, sou de marroquim, costurada pelas mãos de uma gentil senhorita, e tenho uma cortiça dentro de mim. Mas duvido que se veja isso agora. Eu estava prestes a casar-me com uma andorinha quando caí na calha, e ali estive por cinco anos, encharcada de água. É um longo tempo, pode crer, para uma jovem.
O Pião não respondeu. Pensava em sua antiga namorada, e quanto mais a ouvia, tanto mais certo estava de que era ela.
Nisto chegou a criada e quis virar a lata de lixo.
- Oh! Aqui está o Pião Dourado! - disse ela.
E o Pião retornou à sala, à antiga posição de respeito, mas da Bola nada mais se ouviu. O Pião nunca mais falou em seu antigo amor. 
O amor se extingue quando a amada passa cinco anos numa calha, embebendo-se de água. Nem a conhecem mais quando a encontram na lata de lixo.


Hans Christian Andersen
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O colarinho

Era uma vez um cavalheiro elegante. Tinha uma calçadeira e uma escova, e possuía o mais lindo colarinho do mundo. É a história desse Colarinho que vamos ouvir. 
Já havia atingido a idade em que devia casar-se e, por acaso, encontrou, certo dia, com uma Liga, na cesta de roupa lavada. 
- Escuta! - disse ele - nunca vi criatura tão delgada e elegante, tão suave e graciosa. Posso perguntar como se chama? 
- Não o direi - respondeu a Liga. 
- Onde mora? - insistiu o Colarinho. 
A Liga, porém, de tão tímida e encabulada, nem respondeu. 
- A senhorita é como um gracioso cinto - disse o Colarinho - uma espécie de cinto interno... Vejo que a senhorita tanto presta serviços como enfeita. 
- Não fale comigo - disse a Liga - não me parece que lhe dei pretexto para isso. 
- Deu. Ser tão linda como a senhorita já é pretexto bastante. 
- Não chegue tão perto de mim! - protestou a Liga - o sr. até parece homem! 
- E sou. Sou um cavalheiro elegante - disse o Colarinho - tenho calçadeira e escova. 
Não era bem verdade, pois quem os tinha era o seu dono, mas ele gostava de contar vantagem. 
- Não chegue tão perto de mim! - repetiu a Liga - não estou habituada a isso! 
- Fingida! - disse o Colarinho. 
Foi ele então tirado da cesta de roupa lavada, engomado e posto no espaldar de uma cadeira, ao Sol. Em seguida, foi levado para a tábua de passar. O ferro quente veio vindo. 
- Cuidado! - disse o Colarinho - sinto calor. 
Sinto-me outro, estou perdendo as dobras. Está me queimando! 
- Trapo velho! - respondeu o Ferro. 
E passou, altivo, sobre o Colarinho, imaginando ser uma locomotiva que ia a puxar vagões. 
- Trapo! - repetiu. 
O Colarinho desfiou um pouco nos cantos. Veio a Tesoura, para cortar os fios. 
- Oh! - disse o Colarinho, vendo-a - a senhorita deve ser uma primeira bailarina! Como sabe erguer as pernas! A senhorita é a dançarina mais linda que já vi. Nenhum ser humano a poderá igualar. 
- Sei disso! - atalhou a Tesoura. 
- Bem merecia ser condessa - continuou o Colarinho - tudo quanto possuo é um amo elegante, uma calçadeira e uma escova. Quem me dera ter um condado! 
- Estás me cortejando? - perguntou a Tesoura. 
Zangou-se, e assestou-lhe um profundo corte. 
- Terei, decerto, que pedir a mão à Escova - deliberou o Colarinho. 
- Como conserva bem seus cabelos, senhorita - começou, ao vê-la - nunca pensou em tornar-se noiva? 
- Pensei! E tanto pensei que já estou comprometida, como deve saber. 
- Já é noiva! - disse o Colarinho. 
Não havia mais ninguém para cortejar, e ele mandou tudo às favas. 
Passou-se um longo tempo. O Colarinho foi parar no depósito de uma fábrica de papel. Havia ali uma grande reunião de trapos, os finos de um lado, e os grossos do outro, como é conveniente. Todos tinham muito o que contar, mas o Colarinho era quem mais falava: um verdadeiro fanfarrão. 
- Tive muitas namoradas! - contou ele - eu não podia mais viver sossegado. Também, pudera, um cavalheiro elegante, como eu, com muita goma! Dono de uma calçadeira e de uma escova, que eu nunca usava. Deviam ter me visto naquele tempo. Nunca esquecerei minha primeira namorada, uma Liga, tão fina, tão suave e graciosa. Ela atirou-se a um balde de água por minha causa. Houve também uma primeira bailarina, de quem ainda guardo esta cicatriz. Ela era tão irascível! Minha própria Escova andava apaixonada por mim. Perdeu todo o cabelo, só de paixão. Sim, sim... Tive muitos casos assim na vida. Mas quem mais pena me causou foi a Liga, que se lançou ao balde de água. Tenho muita coisa na consciência, e bem posso tornar-me papel branco. 
E foi em que todos os trapos se tornaram. Todos os trapos se transformaram em papel branco. O Colarinho veio a ser precisamente o pedaço de papel que aqui vemos, no qual está impressa esta história, e isso porque ele era um fanfarrão, alardeando coisas que nunca se tinham passado. 
Nisso devemos pensar, para não nos comportarmos do mesmo modo, pois não sabemos se vamos também parar um dia num depósito de trapos e nos transformaremos em papel branco, no qual será impressa toda a nossa história, até os detalhes mais secretos, vendo-a conhecida de todo o mundo, como a do Colarinho.

Hans Christian Andersen
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O patinho feio

Era verão e os dias estavam lindos. O feno formava pilhas nos campos. As cegonhas caminhavam com suas longas pernas vermelhas, tagarelando umas com as outras. 
No meio de um grande bosque, havia um lindo lago. 
No ponto mais ensolarado, à beira do lago, via-se um velho casarão. A grama, muito bem aparada, ia da casa até a beira da água. 
A paisagem era realmente encantadora. 
No meio da folhagem do bosque, uma pata, no seu ninho, aguardava os patinhos que iam nascer. 
Já estava bem cansada de ficar ali tanto tempo. 
Além disso, quase não recebia visitas, pois os outros patos gostavam mais de nadar do que sentar-se embaixo das folhas para tagarelar com ela. 
Afinal, os ovos começaram a estalar, um após outro. 
Os patinhos puseram as cabecinhas para fora e saltaram da casca. 
Dona Pata, grasnou de contentamento e eles responderam baixinho: 
- Quá... Quá... Quá... 
Muito admirados, olhavam para todos os lados. 
A mamãe deixou-os olhar tanto quanto quiseram, pois a cor verde das folhas faz muito bem aos olhos. 
- Como é grande e claro o mundo cá fora! - exclamaram os patinhos. 
- Vocês pensam que o mundo é só isto? - perguntou dona Pata. Ele se estende até o outro lado do bosque e vai seguindo até perder-se de vista. Bem, penso que vocês já estão todos aqui, não é? 
Ela se levantou e olhou em volta. 
- Não, ainda falta um. O ovo maior está inteirinho. Quanto tempo levará para estalar? 
Dizendo isto, dona Pata sentou-se novamente no ninho. 
- Alô, como vai passando? - perguntou uma velha pata que veio fazer-lhe uma visita. 
- Vou bem, obrigada, apenas um pouco aborrecida porque a casca deste ovo ainda não se partiu. Entretanto você já pode olhar os outros patinhos. São os mais lindos que já vi, exatamente iguais ao pai. 
- Deixe-me olhar o ovo que ainda não se abriu - disse a velha pata. 
- Hum! Você pode ter certeza de que é ovo de perua. Eu já fui enganada assim, uma vez, e só tive aborrecimentos, pois perus têm medo de água. Grasnei e mordi-os, mas não consegui atirá-los na água. Deixe-me ver o ovo. Não resta dúvida, é de perua. Não perca seu tempo, deixe-o sozinho e ensine os outros a nadar. 
- Chocá-lo-ei mais um pouco - disse a pata. 
- Desejo-lhe boa sorte. Passe bem. 
A velha pata foi-se embora. 
Daí a algum tempo, o ovo começou a estalar e de lá de dentro, foi saindo um patinho muito grande e feio. Dona Pata olhou-o muito desapontada e exclamou: 
- Que patinho monstruoso! Não se parece com nenhum dos outros. Será que é filho da perua? Bem. logo descobrirei isto. Irá para a água, nem que eu tenha que empurrá-lo. 
O dia seguinte amanheceu lindo. O Sol brilhava sobre a folhagem. A mamãe pata foi logo com sua ninhada até o lago. Atirou-se à água e chamou os filhinhos: 
- Quá! Quá! Quá! - disse ela, e eles, uns atrás dos outros, foram-se atirando. 
A água cobriu suas cabecinhas mas eles levantaram-se e boiaram perfeitamente. Suas patinhas moveram-se e lá foram eles nadando. Até o feioso nadou. 
- Não, este não é peru - disse dona Pata. Sabe usar muito bem as patas e mantém-se ereto sobre a água. Afinal de contas, é meu filho e, talvez, quando crescer não seja tão feio. Qua! Quá! Quá! Venham comigo. Vou apresentá-los no quintal. Fiquem sempre perto de mim, para não serem pisados, e muito cuidado com o gato. 
Foram, então, ao quintal. 
Havia lá horrível confusão, pois dois patos disputavam uma cabeça de peixe e o gato acabou apossando-se dela. Dona Pata lambeu o bico despeitada, pois logo desejara que a cabeça ficasse para ela. 
- Endireitem as patinhas - disse aos filhotes. Grasnem apropriadamente e inclinem a cabeça diante da velha pata. Ela é a mais importante de todas nós aqui. Tem sangue espanhol nas veias. Tem uma argola vermelha numa das patas, o que indica sua boa raça. Lá vem ela. Vamos, grasnem, inclinem a cabeça. 
Eles fizeram exatamente o que a mãe recomendou. Os outros patos olharam-nos e comentaram: 
- Agora teremos que suportar esta tribo, como se não fôssemos suficientes! Cruzes! Que patinho feio aquele lá atrás! 
Dizendo isto, um dos patos saiu correndo e bicou o pobre bichinho no pescoço. 
- Deixe-o em paz - pediu dona Pata - ele não está lhe causando nenhum dano. 
- Realmente não está, mas acontece que ele é tão feio e esquisito que não pude controlar-me - respondeu o malvado. 
- Seus filhinhos são lindos, exceto aquele ali - disse a pata velha. Está se vendo que não é de boa raça. É uma pena que você não pode livrar-se dele. 
- Realmente, ele não é muito bonito, mas é muito bonzinho e nada tão bem como os outros. Talvez no futuro melhore - disse dona Pata e acariciou o pescoço do filhinho. 
- Fiquem à vontade, crianças, e se acharem uma minhoca, pode trazê-la para mim - disse, por fim, a pata velha. 
Depois disso, os patinhos sentiram-se mais à vontade. 
O feioso, coitado, levou bicadas e foi sacudido pelos outros patos e até pelas galinhas. Estava desesperado e não sabia que rumo tomar. Servia de gozação para todos. 
Os dias foram-se passando e, cada vez mais, ele se via mais maltratado. Até seus irmãos costumavam aborrecê-lo, dizendo: 
- Se ao menos o gato pegasse esta coisa horrível... 
Sua própria mãe disse um dia: 
- Eu desejava vê-lo bem longe de mim... 
Os patos o bicavam, as galinhas o espicaçavam e a menina que os alimentava sempre o deixava de lado. 
Certo dia, não aguentando mais aquela situação, ele fugiu e chegou à cerca onde os passarinhos se aninhavam. 
- Não tenho culpa de ser tão feio! - pensou, muito triste. 
Continuou a andar até que chegou a um campo, onde viviam patos selvagens. 
Estava tão cansado que passou a noite lá. Pela manhã, os patos selvagens foram inspecionar seu novo companheiro. 
- Que espécie de bicho é você? - perguntaram-lhe assim que ele os cumprimentou. Você é horrivelmente feio, mas isso não tem importância. Pode ficar aqui, desde que não pretenda casar-se em nossa família. 
Pobre patinho! Absolutamente não havia pensado em casamento. Ele desejava apenas permissão para ficar ali no meio da folhagem e beber um pouco de água. Ficou lá dois dias inteiros. No fim desse tempo, dois gansos selvagens, muito mal educados, chegaram-se e disseram: 
- Você é tão feio, camarada, que até temos pena de você. Há outro lago, aqui perto, onde vivem gansos encantadores. São doces criaturas que sabem grasnar de modo especial. Reúna-se ao nosso grupo e vamos até lá. Com a sua feiúra, eles se divertirão bastante. 
Nesse momento, soou um tiro, no alto, e os dois gansos que falavam, caíram mortos. 
Bandos de gansos selvagens voavam assustados. Havia uma grande caçada. Os caçadores estavam escondidos no arvoredo, à volta do lago. A fumaça azul crescia como nuvens, indo perder-se na água. Os cães de caça farejavam à volta. Tudo isso alarmava horrivelmente o pobre patinho feio. Ele curvou o pescoço, para esconder a cabeça debaixo da asa. 
Justamente nesse momento, um cão muito grande apareceu a seu lado, com a língua pendurada. Os olhos tinham um brilho feroz. Abriu bem a boca, mostrando os dentes afiados, mas afastou-se sem tocá-lo. 
- Oh, graças a Deus! - suspirou o patinho. Sou tão feio que nem o cão quis morder-me. 
Deitou-se enquanto os tiros assobiavam entre os galhos. Já era tarde quando o barulho cessou. Apesar disso, o patinho não ousou levantar-se. Esperou muitas horas ali sentado. 
Finalmente, tomou coragem, levantou-se, olhou à volta e voou o mais depressa que pôde. Correu por campos e prados. Ventava tanto que era difícil equilibrar-se. 
Tarde da noite, chegou a um casebre. Era uma palhoça tão miserável que se mantinha em pé por milagre. O vento assobiava tão ferozmente, à volta do patinho, que ele teve que firmar-se sobre a cauda, para resistir. 
De repente, notou que o vento abrira a porta do casebre. Resolveu, então, entrar para abrigar-se. Ali vivia uma senhora idosa, com um gato e uma galinha. 
Pela manhã, o patinho foi descoberto. O gato Mimi começou a ronronar e a galinha Baixotinha cacarejou. 
- Que será isto? perguntou a senhora - agora terei ovos de pata, caso não seja um pato. Esperemos para ver. 
Durante três semanas o patinho esteve em obervação, mas os ovos não apareceram. O gato e a galinha eram donos da casa e, por isso, julgavam-se muito importantes. A galinha perguntou ao patinho: 
- Você põe ovos? 
- Não - respondeu o patinho humildemente. 
- Você sabe arquear as costas e ronronar? - perguntou o gato. 
- Também não - tornou a responder o patinho. 
- Pois então, fique sabendo que é um grande tolo - disse a galinha. 
O patinho sentou-se a um canto, cozinhando o seu mau-humor. 
De repente, apossou-se dele um grande desejo de nadar ao Sol, sentindo a frescura da manhã. Falou à galinha sobre o assunto. Ela, que nada entendia disso, respondeu-lhe: 
- Você não tem o que fazer; por isso, está com a cabeça cheia de fantasias. 
- É tão delicioso flutuar sobre a água! exclamou o patinho. 
- Como é bom sentir a água roçando nossa cabeça, quando mergulhamos. 
- Penso que você ficou maluco. Fale ao gato sobre esse divertimento bobo. Fale também à senhora. Ela é uma sábia criatura. Aposto que nenhum dos dois já desejou divertir-se na água. 
- Você não me compreende - disse o patinho. 
- Não quero compreender, pois você não passa de um grande bobalhão - respondeu a galinha. 
- Bem, penso que vou embora - anunciou o patinho. 
- A mais tempo - respondeu a galinha. 
Lá se foi o patinho outra vez. 
Atirou-se à água, nadou e mergulhou, sentindo-se mais calmo, depois disso. 
Entretanto, continuava a ser olhado com indiferença pelas criaturas, por causa de sua feiúra. O outono chegou. As folhas das árvores foram ficando amareladas. O vento soprava forte e o céu estava pesado de nuvens. Um corvo pousou na cerca e grasnou de frio. O patinho ficou amedrontado. Chegou o inverno. 
Uma tarde, quando o Sol se punha, um bando de bonitas aves surgiu por trás do arvoredo. O patinho nunca tinha visto animais tão bonitos. Eram brancas, deslumbrantes, com o pescoço longo e curvo. Eram cisnes. Espalhavam suas largas asas e voavam das regiões frias para as terras quentes. Voavam tão alto, que o patinho sentiu-se estranhamente inquieto. 
Durante muito tempo nadou, acompanhando o vôo dos cisnes. Quando os perdeu de vista, mergulhou, e ao vir à tona, saiu perto deles novamente. Não os conhecia, mas sentia-se estranhamente atraído para eles. Intimamente desejou ser assim tão bonito. 
O inverno estava tão amargamente frio, que o patinho teve que nadar muitas vezes, à volta do lago para aquecer-se. Entretanto, a superfície do lago cada vez diminuía mais e, finalmente, congelou-se. O patinho teve que agitar as patinhas, para não virar sorvete, mas acabou ficando cansado. 
De manhã cedo, um camponês vinha andando e viu-o, ali, quase morto. Apanhou-o e levou-o para casa, entregando-o à esposa. Lá o patinho reviveu. 
As crianças quiseram brincar com ele, mas o coitado teve medo de ser maltratado.  Por isso, meteu-se na panela do leite, esparramando-o por todos os lados. 
A mulher do camponês gritou e sacudiu as mãos, deixando-o ainda mais assustado. A mulher, aborrecida, quis lhe bater com uma vara. Por sorte, a porta estava aberta e ele pôde sair. 
Estava exausto. Seria muito triste descrever todas as privações que ele teve de enfrentar pelo resto do inverno. 
Quando o Sol voltou a brilhar, o patinho foi para o lago. As cotovias cantavam e a primavera vinha chegando. Ele já estava mais crescido e sacudia as asas com mais força do que antes. No ar, sentia-se o perfume dos lilases. A frescura da primavera estava deliciosa, com as macieiras em flor. Exatamente, à sua frente, encontrou três cisnes, que avançavam em sua direção, deslizando suavemente na superfície do lago. O patinho logo os reconheceu. Eram os mesmos cisnes que ele havia visto voando. Ficou possuído de estranha melancolia. 
- Voarei até as aves reais, e com certeza, elas me darão as costas, por causa de minha feiúra. Mas não faz mal. Prefiro ser morto por elas do que ser mordido pelos patos, bicado pelas galinhas, espancado pela mulher do camponês, e ainda ter que suportar a rigidez do inverno. 
Assim pensando, voou em direção aos cisnes. Eles o viram e se aproximaram, gentilmente, batendo as asas. 
- Matem-me - disse ele. 
Abaixou a cabeça e ficou esperando a morte, mas, através da água transparente, o que viu? Com grande surpresa, viu sua própria imagem refletida na água. Ele não era mais aquele feio patinho, cinzento e desajeitado. Era um belo cisne! Ficou verdadeiramente emocionado. 
Os cisnes grandes nadavam à sua volta, como se quisessem render-lhe homenagem. 
Algumas crianças vieram ao lago trazendo pedacinhos de pão para eles. A menor exclamou: 
- Hoje há mais um cisne, e como é bonito! 
As outras crianças disseram: 
- Ele é o mais belo de todos e é muito jovem. 
Os velhos cisnes inclinaram as cabeças, em sinal de respeito, e depois acariciaram-no com o bico. 
O cisnezinho ficou encabulado e escondeu a cabecinha sob a asa. Apesar de muito contente, não estava orgulhoso, pois quem tem bondade no coração não sente orgulho. Lembrou-se de tudo o que sofrera e deu graças a Deus por agora ser tão feliz!

Hans Christian Andersen
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Cinco grãos de um só vagem

Eram Cinco Ervilhas dentro de uma Vagem. Eram verdes, e a Vagem era verde. Por isso, pensavam que todo o mundo era verde, no que tinham toda a razão: para elas, de fato, o era. 
A Vagem foi crescendo, adaptando-se ao espaço de sua moradia. Formavam uma fila perfeita. O Sol brilhava lá fora e aquecia a Vagem. A chuva tornava-a transparente, dentro dela era quente e agradável, era claro durante o dia e escuro à noite, como deve ser. As Ervilhas foram aumentando de tamanho e pensando cada vez mais, pois alguma coisa tinham de fazer. 
- Teremos de ficar sempre aqui dentro? - conjeturavam - tomara que não nos tornemos duras de tanto ficar aqui. Sentimos que deve existir alguma coisa lá fora... 
Passaram-se as semanas. As Ervilhas se tornaram amarelas, e amarela a Vagem se tornou. 
- O mundo todo está ficando amarelo - disseram. Que mais haveriam de dizer? 
Um dia, ouviram bulha na Vagem. Esta foi arrancada, foi ter a mãos humanas, e depois a um bolso de paletó, em companhia de várias outras vagens cheias. 
- Logo a Vagem será aberta... - disseram as Ervilhas, e ficaram esperando. 
- Quem me dera saber agora qual de nós irá mais longe na vida - disse a menor delas - logo o veremos. 
- Aconteça o que tem de acontecer! - disse a maior. 
- Crac! - a Vagem fendeu-se, e todas as Cinco Ervilhas saíram rolando, à clara luz do dia. 
Achavam-se na mão de um menino, que declarou serem elas ótimas ervilhas para o seu canhãozinho. Imediatamente uma delas foi para o canhão, e foi atirada. 
- Lá vou eu, voando pelo mundo afora! - pega-me, se puderes! - gritou a Ervilha. 
E desapareceu ao longe. 
- Eu - disse a segunda - vôo diretamente ao Sol, que é uma verdadeira Vagem de Ervilhas e me serve muito bem. 
E sumiu. 
- Nós dormiremos onde chegarmos - disseram as duas outras - mas havemos de rolar para diante. 
E antes de irem para o canhão, sairam rolando pelo solo. Mas, apesar disso, sempre chegaram ao canhão. 
- De todas, nós é que iremos mais longe - garantiram. 
- Que aconteça o que tem de acontecer! - disse a última. 
Foi atirada ao ar, e voou até uma tábua, embaixo da janela de uma água-furtada, indo cair numa fenda onde havia musgo e terra úmida. O musgo tornou a fechar-se, e lá ficou ela, esquecida de todos, mas não por Deus. 
- Que aconteça o que tem que acontecer! - repetiu. 
Na água-furtada morava uma mulher pobre que saia todos os dias para o trabalho. Limpava lareiras, cortava lenha, e fazia outros trabalhos pesados, pois tinha forças e era muito trabalhadora. Mas era pobre, e pobre continuava. Em casa, no quartinho, jazia sua filha única, já mocinha, muito franzina e delicada. Estava de cama, enferma, já havia um ano inteiro, e parecia não poder viver nem morrer. 
- Ela irá ter com a irmãzinha - dizia a mulher - tive duas filhas e bem duro me era cuidar de ambas. Deus dividiu então o trabalho comigo, e tomou uma para si. Agora, eu gostaria de ficar com a única que me resta, mas Deus, com certeza, não as quer ver separadas, e ela irá para junto de sua irmãzinha. 
Mas a menina doente continuava a viver. Ficava deitada o dia inteiro, muito paciente e quieta, enquanto a mãe andava fora, tratando de ganhar alguma coisa. 
Era na primavera, e, um belo dia, pela manhã bem cedo, quando a mãe ia sair para o trabalho e o Sol entrava radiante pela janelinha, a menina doente olhou para a vidraça de baixo. 
- Que será aquilo ali, junto à vidraça? Uma coisa verde, que se mexe com o vento... 
A mãe foi até a janela e entreabriu-a. 
- Vejam só! - disse ela - é um pézinho de ervilha que nasceu aqui. Como terá o grão vindo parar nesta fenda? terás um jardinzinho para olhar. 
A cama da doente foi mudada mais para perto da janela, onde ela podia ver a ervilha que brotava. A mãe foi para o trabalho. 
- Mãe, creio que vou sarar - disse a menina, à noitinha - hoje o Sol foi tão bom para mim! O pézinho de ervilha vai bem, e também eu hei de um dia ir bem, podendo sair ao Sol. 
- Tomara que isso aconteça - disse a mãe. 
No fundo, porém, ela não acreditava que tal coisa acontecesse. Todavia, deu à verde plantinha, que infundira na filha nova alegria de viver, uma varinha, como tutor, para que o vento não a partisse. Esticou um barbante, da tábua ao alto do caixilho da janela, para que o ramo da ervilha tivesse onde se apoiar e se agarrar com suas gavinhas, quando soubesse. E a planta foi crescendo, crescendo. Dia a dia via-se a diferença de tamanho. 
- A ervilha já está dando flor! - disse a mulher, um dia, pela manhã. 
Também ela começou a ter fé e esperança em que a menina doente muito em breve se restabelecesse. Ocorreu-lhe que, nos últimos tempos, a filha falara com mais vivacidade, se erguera da cama e ficara sentada, fitando com olhos brilhantes o seu pézinho de ervilha. Na semana seguinte, a doente, pela primeira vez, esteve de pé por mais de uma hora. 
Ficou sentada, tomando Sol. A janela estava aberta, e via-se lá fora, inteiramente desabrochada, uma flor de ervilha, branca e vermelha. A menina inclinou a cabeça e beijou de leve as pétalas. 
Aquele dia foi para ela um dia de festa. 
- Foi o próprio Deus que a plantou e a fez crescer, para dar-te esperança e alegria, minha abençoada filha, e a mim também - disse a mãe, feliz, sorrindo para a flor, como um anjo vindo de Deus. 
Mas voltemos às outras Ervilhas. A que saira voando pelo vasto mundo - "Pega-me se puderes" - caiu numa calha d'água e foi parar no papo de uma pomba, onde ficou, como Jonas na baleia. As duas indolentes não ficaram atrás: foram também comidas pelas pombas, o que é de muita utilidade. Mas a quarta, que queria ir até o Sol, caiu na sarjeta, onde ficou durante dias e semanas, mergulhada nas águas servidas. Com isso, inchou: 
- Estou engordando que é uma beleza - disse a Ervilha - vou acabar rachando. Não creio que outra Ervilha possa chegar onde já cheguei. Sou a mais notável das cinco que nasceram na Vagem. 
E a sarjeta confirmou. 
Junto à janela da água-furtada, entretanto, a menina, com olhos brilhantes, e já com sinais de saúde nas faces, juntou as mãos sobre a flor de Ervilha e agradeceu a Deus por tê-la encontrado. 
A sarjeta, porém, repetia: 
- Fico com a minha Ervilha.

Hans Christian Andersen
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A colina dos elfos

Umas ágeis lagartixas correram pelas fendas do tronco de uma velha árvore. Entendiam-se muito bem, pois todas falavam a língua de lagartixa.
- Que barulheira tem havido lá na velha Colina dos Elfos! - disse uma delas - já lá vão duas noite que não prego olho, por causa do alarido lá em cima. Eu podia estar na cama com dor de dente, que dava na mesma: em tal situação também não consigo dormir.
- Há qualquer coisa lá dentro - disse outra lagartixa - ficam na Colina, onde se erguem os quatro pilares vermelhos, até a hora do galo cantar.
Estão limpando tudo, e as jovens elfas aprenderam novos bailados. Preparam alguma coisa, na certa.
- Falei com uma minhoca de minhas relações - informou uma terceira lagartixa - ela vinha diretamente da colina, onde cavara a terra noite e dia. Ouvira muita coisa, pois ela apenas ouve: não vê, não enxerga, a coitada.
Só se vale mesmo do tato, para ajudar a audição. Esperam visitantes na Colina, visitantes ilustres. Quem são, a minhoca não quis dizer. Ou simplesmente não sabia. Todos os fogos-fátuos foram convocados, para realizarem uma marcha de archores. Ouro e prata, que não faltam lá na colina, estão sendo polidos e postos a enxugar sob a luz da Lua.
- Quem poderão ser esses visitantes? - perguntaram todas as lagartixas - o que irá haver por lá? ouçam: que zoada! Que burburinho!
Naquele momento abriu-se a Colina dos Elfos e saiu uma velha elfa solteirona, sem costas (segundo a mitologia escandinava, os elfos, embora muito graciosos e bonitos de frente, não têm costas: são ocos por trás), mas muito bem vestida, andando num passinho miúdo e rápido. Era a velha governanta do Rei dos Elfos. Tinha certo parentesco, embora remoto, com a família real, e trazia, como insígnia, um coração de âmbar na frente. Como andava depressa! Em seu passinho curto, as perninhas não paravam. Ela foi direto ao pântano, onde morava o Engole-Vento.
- O sr. está convidado a ir à Colina dos Elfos esta noite - disse ela - mas peço-lhe a gentileza de fazer-nos primeiro um grande serviço. Peço-lhe que se encarregue de distribuir os convites.
Já que o sr. mesmo não tem casa, pode fazer-nos esse favor. Vamos receber visitas, gente muito nobre e ilustre, duendes de alta linhagem, e o velho Rei dos Elfos quer apresentar a todos eles o que há de melhor.
- Quem será convidado? - perguntou o Engole-Ventos.
- Para o grande baile pode vir todo o mundo, até seres humanos, contanto que saibam falar dormindo ou conheçam um pouco de outras artes nossas. Mas, para a festa inicial, haverá rigorosa seleção: só queremos a fina flor da sociedade, o que há de mais aristocrático. Já discuti com o Rei, pois, a meu ver, nem mesmo os fantasmas devemos convidar. O Tritão e suas filhas devem ser convidados em primeiro lugar; não gostam de ficar no seco, mas poderão receber, cada um, uma pedra molhada para sentar, ou coisa ainda melhor. Espero que assim não se recusem a vir dessa vez. A seguir, devem ser convidados todos os velhos duendes de primeira categoria, os de cauda, o Homem do Ribeirão e os anões. Penso também que não podemos deixar de convidar o Porco do Sepulcro, o Cavalo da Morte e o Gnomo da Igreja (segundo a superstição popular, na Dinamarca, embaixo de cada igreja que é construída, deve ser sepultado um cavalo vivo; o fantasma deste cavalo é o Cavalo da Morte, que anda à noite, mancando, pois tem só três pernas, e vai às casas onde alguém está para morrer.
Em algumas igrejas era enterrado um porco vivo, e o fantasma desse porco era chamado o Porco do Sepulcro). Eles pertencem ao clero, não são, na verdade, gente nossa, mas, enfim, têm o seu cargo. Além disso, sempre nos visitam. Logo, creio que devem ser lembrados.
- Croááá... - disse o Engole-Vento, que antes tinha os apelidos Noitibó e Curiango. E saiu voando, para convidar o pessoal.
As moças elfas já dançavam na Colina. Bailavam com um xale longo, tecido de névoa e luar, o que é lindo para os olhos que apreciam coisa assim.
No centro da Colina dos Elfos, o grande salão estava muito bem arrumado e enfeitado. O chão fora lavado com luar e as paredes polidas com ungüento de feiticeira, o que as deixara brilhantes como pétalas de tulipa diante da luz.
A cozinha estava abarrotada de iguarias finas - como rãs no espeto, peles de cobra-d'água, dedinhos de criança pequena, saladas de semente de chapéu-de-cobra, focinhos de camundongo molhados em cicuta, cerveja fabricada pela Bruxa do Charco, vinho cintilante de salitre das câmaras mortuárias subterrâneas, enfim: todos os manjares mais substanciais e deliciosos. Pregos enferrujados e cacos de vidraça de igreja figuravam entre as sobremesas.
O velho Rei dos Elfos mandou polir sua coroa de ouro com lápis de lousa. Era o lápis de um primeiro aluno da classe, coisa muito difícil de obter para o Rei dos Elfos. No dormitório penduravam cortinas e as prendiam com saliva de cobra-d'água. Havia, de fato, grade azafama, um interminável burburinho.
- Agora é defumar tudo com crina e cerdas de porco queimadas, e creio que fiz minha parte - disse a velha elfa solteirona.
- Paizinho! - suplicou a mais nova das elfas - irei afinal saber quem são os nobres visitantes?
- Está bem - disse o pai - não tenho outro remédio senão revelá-lo. Duas de minhas filhas têm de estar prontas para o casamento. Duas vão certamente nos deixar, para casar. Virá aqui, com os seus dois filhos, que devem escolher mulher, o Duende-Ancião lá de cima, da Noruega, residente na velha montanha de Dovre e senhor de muitos castelos, situados nas rochas, e de uma mina de ouro que vale mais do que se pensa. Ele é o verdadeiro tipo do velho norueguês, honrado, alegre e simples. Conheço-o dos velhos tempos, quando bebíamos juntos e fizemos camaradagem.
Ele tinha vindo cá, buscar sua esposa, que já é morta. Era a filha do Rei das Penedias de Moen. Tenho muita saudade do velho duende norueguês. Os filhos, dizem, são uns rapazes malcriados e fanfarrões. Mas, quem sabe? Talvez não seja verdade. Além disso, eles podem mudar com o tempo. Vamos ver se minhas filhas os põem no bom caminho.
- E quando vêm eles? - perguntou uma das filhas.
- Depende dos ventos e do tempo - disse o Rei do Elfos - eles fazem uma viagem econômica. Vêm de navio. Eu queria que viessem pela Suécia, mas o velho não gosta daqueles lados. Ele não acompanha a evolução do tempo,
e isso, a meu ver, é o seu único defeito.
Naquele momento vieram pulando dois fogos-fátuos, um mais depressa que o outro, por isso chegou primeiro.
- Eles vêm vindo! Eles vêm vindo! - avisou.
- Dai-me minha coroa e deixai-me ficar no lugar! - disse o Rei.
As filhas ergueram os longos xales e inclinaram-se até o chão.
Lá estava o Duende-Anão de Dovre, com sua coroa de pontas de gelo endurecidas e cones de pinheiros polidos. Trajava uma pele de urso, e calçava botas de inverno; os filhos, porém, vinham de pescoço descoberto e sem suspensórios, pois eram homens fortes.
- Isso é Colina? - perguntou o mais novo dos rapazes, apontando a Colina dos Elfos - na Noruega chamamos a isso um buraco!
- Meninos! - disse o velho - buracos vão para dentro, colinas vão para cima! Não tendes olhos para ver?
Só de uma coisa se admiravam: entenderam, sem dificuldade, a língua do lugar.
- Não nos façais de tolos! - disse o velho - devia-se crer que ainda cheirais a cueiros!
Entraram assim na Colina dos Elfos, onde se achava reunida a seleta e festiva companhia. Mas parecia reunida às pressas, como amontoada pelo vento. No entanto, tinham cuidado do conforto individual de cada um. A gente do mar estava à mesa, sentada em grandes vasilhas de água, e diziam que se sentiam como em casa.
Todos observavam a etiqueta, com exceção dos dois jovens duendes noruegueses, que punham os pés sobre a mesa, convencidos de que para eles tudo ficava bem.
- Tirem as patas de cima da mesa! - disse o velho duende, e os rapazes obedeceram, embora com relutância.
Com os cones de pinheiros que traziam nos bolsos, faziam cócegas nas damas, suas vizinhas de mesa. Em seguida, tiraram as botinas, para ficarem mais à vontade, e deram-nas a uma das damas, para segurar. O pai, o velho Duende de Dovre, sim, era diferente. Sabia contar coisas bonitas das altas montanhas norueguesas, de cachoeiras que despencavam, brancas de espuma, com um fragor que parecia trovão e música de órgão misturados. Falou do salmão, que salta contra a água da correnteza, quando o gênio das águas dedilha sua harpa de ouro; falou das brilhantes noites hibernais, quando soam as campainhas dos trenós e os rapazes correm, com archotes acesos, sobre os lisos campos de gelo - gelo tão transparente que as pessoas vêem, a seus pés, os peixes fugirem espavoridos. Sabia narrar com tanta vivacidade que se via e ouvia o que ele contava. Era como se escutassem as serrarias em movimento, os rapazes e moças cantando e dançando.
De repente, arrebatado, o velho duende beijou a velha elfa solteirona - mas foi como um beijo de tio, embora nem fossem parentes.
Chegou a vez de as moças dançarem - não só simples bailados como sapateados. Seguiram-se bailados artísticos, individuais, e como sabiam elas usar as penas!
No auge da dança, não se sabia mais o que era um lado e o que era outro, o que eram braços e o que eram pernas. Giravam com tal rapidez que o Cavalo-da-Morte até se sentiu mal e teve de sair da mesa.
- Prrrr! - disse o velho Duende - que festa de pernas! Mas o que sabem elas, além de dançar, levantar as pernas e fazer remoinhos?
- Já o saberás! disse o Rei dos Elfos.
E chamou a mais jovem de suas filhas, fina e clara como o luar, a mais delicada dentre as irmãs. Ela tomou na boca uma varinha branca, e praticamente desapareceu. Era esta a sua arte.
Duende-Ancião, porém, disse que não apreciava aquele tipo de arte em uma esposa, e que, segundo acreditava, também seus filhos não haveriam de apreciá-la.
A outra moça conseguia andar ao lado de si própria, como se projetasse uma sombra, coisa que os duendes não têm.
A terceira era completamente diferente: trabalhava na cervejaria da Feiticeira do Charco e sabia lardear nós de amieiro com pirilampos.
- Esta dará uma boa dona de casa - disse o Ancião, piscando os olhos.
Seguiu-se a quarta moça. Trazia consigo uma grande harpa de ouro, e, quando feriu a primeira corda, todos ergueram a perna esquerda, pois os duendes são canhotos; quando feriu a segunda corda, todos tiveram de fazer o que ela queria.
- Mulher perigosa! - opinou o Duende-Ancião.
Seus dois filhos sairam da Colina entediados com tudo aquilo.
- E o que sabe fazer a filha seguinte? - perguntou o velho.
- Aprendi a gostar de tudo quanto é norueguês - disse ela - e só me casarei com a condição de poder ir a Noruega!
- É só porque ela ouviu dizer, numa canção norueguesa, que quando o mundo se acabar, os picos noruegueses ficarão, como monumentos do passado - cochicou ao Duende- Ancião a irmã mais nova - por isso ela quer ir lá para cima, pois vive com medo do fim do mundo.
- Ah! - disse o Duende-Ancião - então é por isso? Mas o que sabe fazer a sétima e última das moças?
- Antes da sétima vem a sexta! - retificou o Rei dos Elfos, que sabia calcular. Mas a sexta não tinha grande vontade de aparecer.
- Só sei dizer a verdade a todos - disse ela, afinal - ninguém se importa comigo e tenho meu tempo ocupado em costurar minha própria mortalha.
Veio a sétima e última. Que sabia ela? Sabia contar fábulas, tantas quantas quisesse.
- Aqui estão todos os meus cinco dedos - disse o Duende-Ancião - conta-me uma história a respeito de cada um deles.
A moça tomou-lhe a mão, e ele riu-se a valer. Quando ela chegou ao Seu-Vizinho, que tinha anel de ouro na cintura, como se soubesse que ia haver noivado, disse o Duende-Ancião:
- Segura o que tens! A mão é tua! A ti eu mesmo quero por esposa.
A moça objetou que restava contar ainda a história de Seu-Vizinho e de Minguinho.
- Estas ouviremos no inverno - disse o Duende-Ancião - e ainda a história do pinheiro, a da bétula e a dos dotes das fadas e do frio cortante.
Tu terás muitas histórias a contar, pois é coisa que ninguém sabe direito lá em cima. E nós ficaremos na casa de pedra, iluminada pela luz do archote, e tomaremos nosso vinho caseiro nos cornos de ouro dos antigos reis noruegueses. O gênio da água presenteou-me com alguns. Lá nos virá visitar o Duente do Gar, que te contará todas as cantigas das pastoras. Será muito alegre! O salmão saltará na cachoeira, baterá na parede de pedra, mas não conseguirá entrar. Sim, podes crer, tudo é muito belo na querida e velha Noruega! Mas onde estão os rapazes?
Sim, onde estão os rapazes? Andavam correndo pelo campo e sopravam os fogos-fátuos, apagando-os, coitados, a eles que tinham vindo para realizar a marcha dos archotes.
- Isso é coisa que se faça? - censurou o Duende-Ancião - acabo de tomar uma mão para vós. Podeis tomar agora uma das tias.
Os rapazes, porém, disseram que preferiam fazer um discurso e beber, celebrando o acontecimento. Não tinham vontade de casar. Fizeram, pois, seus discursos, beberam e celebraram. Em seguida tiraram os casacos e deitaram-se na mesa, para dormir, sem a menor cerimônia.
O ancião, no entanto, ficou andando em volta da sala, dançando com sua jovem noiva, e trocou de botina com ela, o que lhe parecia mais elegante que trocar de anéis.
- O galo está cantando! - anunciou a velha solteirona, dona da casa - temos de fechar as janelas, para que o Sol não brilhe aqui dentro.
E a Colina dos Elfos fechou-se.
Lá foram as lagartixas corriam para baixo e para cima, na árvore oca.
- Como gostei do Duende-Ancião norueguês! - disse a lagartixa à companheira.
- Pois eu gostei mais dos rapazes - revelou a minhoca.
A pobrezinha, porém, não enxergava: era um bicho insignificante.

Hans Christian Andersen
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