Cheio de humanidade,
Certo lobo (se é que há lobos tais neste mundo)
Um dia refletiu sobre sua crueldade
De modo mais profundo,
Embora fosse cruel só por necessidade,
- Todos me odeiam - diz - vê no lobo cada um
O inimigo comum:
Cães, aldeões, caçadores,
Todos se juntam a fazer-lhe uma guerra
Júpiter, no alto, está tonto com seus clamores;
De lobos por isso é tão deserta a Inglaterra:
Nossa cabeça a prêmio lá foi posta.
O mais humilde fidalgote gosta
De iguais decretos contra nós baixar.
Mal um fedelho o choro principia
E logo a mãe com o lobo o passa a ameaçar
Tudo por causa, só, de um cão rabugento
Que eu de parte deixar preferiria.
Pois nada mais que vida haja tido comamos!
Pastemos brotos, relva e de fome morramos!
Será tal sorte, acaso, pior mal
Do que atrair o ódio universal?
Isto dizendo, viu pastores que, num prado,
Estavam a jantar um cordeirinho assado
Ao espeto. Oh - diz ele - penitente,
Eu me confesso réu do sangue dessa gente,
E eis que seus guardiões
A devoram, pastores e seus cães;
Por que eu, lobo, terei remorsos e vergonha?
Não, pelos deuses, não! De mim não vão zombar!
O cordeirinho eu hei de mastigar
Sem que no espeto ponha;
Ele, a mãe em que mama, o pai e seus parentes
Jamais serão poupados por meus dentes!
Estava certo o lobo. Então nós, que fazemos
Opíparos festins comendo animais,
Motivo para reduzi-lo temos
A manjares somente celestiais?
Não tem ele também de encher o seu surrão?
Pastores, só está o lobo sem razão
Quando um mais forte dela o priva:
Quereis que como anacoreta viva?
Jean de La Fontaine
Jean de La Fontaine foi um grande poeta francês do século XV cujo legado se estende até os dias atuais. Afinal, ele é o "pai" da fábula moderna.
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