Um tímido veado
Por ímpios cães instado,
Foi num curral de bois
Buscar piedoso abrigo
E escudo ao seu perigo.
Um boi disse: "ó vizinho
Vai, segue o teu caminho,
Melhor asilo busca."
Tornou-lhe o cervo assim:
"Irmão, tem dó de mim!
Lá fora anda um cachorro,
Que se me apanha eu morro!
Aqui ficar me deixa,
Que em prêmio um bom pascigo
Te indicarei, amigo.
"Calou-se o boi, e entanto,
O cervo pôs-se a um canto:
Trouxeram erva os moços,
Entraram e saíram,
E o hóspede não viram.
Já livre se julgava
Do susto que encarava;
Pôs-se a comer no feno,
E junto à manjedoura
Foi rede varredoura!
Um boi lhe disse, então:
"Em risco estás, irmão!
Que esse homem de cem olhos
Não veio ind'hoje aqui!
E a vir, pobre de ti!"
O tímido veado
Foi pôr-se alapardado
Entre uma carga de erva;
E entrou nela a comer
Por tempo não perder.
Chegou pouco depois
O dono a ver os bois,
Dos moços precedido;
E um tanto carrancudo,
Pôs-se a ralhar por tudo;
"Levanta esse aguilhão,
A canga está no chão,
Feno ao mourisco deita;
Parece esta erva pouca,
Aqui há outra boca!"
Deitando ao lado os olhos,
Viu entre os verdes molhos
Um galho da armadura
Do tímido veado,
Que estava acaçapado;
Então lhe disse: "olá!
Você também por cá!
Comendo o pasto aos bois!
Espera!..." E c'um forcado
Deu morte ao malfadado!
Tem mais vista, ou melhor,
Os olhos de um senhor,
Do que os dos seus criados;
Por que o próprio interesse
As vistas esclarece.
Moral da Estória:
Para enxergar bem não há nada como o olhar do próprio dono.
Jean de La Fontaine
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