A lei do mútos auxílio é lei antiga e bela
Imposta por Natura.
O burro, com ser burro, andava ao fato dela,
E se em funesto dia a desprezou de vez,
Não sei como tal fez.
Esta justiça devo à boa criatura.
No convívio do cão, seguia de jornada,
Com toda a pacatez e sem pensar em nada.
Tinham o mesmo dono,
O qual, afadigado,
Fez a vontade ao sono,
Veio a talho de foice o caso apropriado,
Pois isto sucedeu, mesmo a meio dum prado
Onde a erva crescia à mão de semear.
O burro, que não era afeito a hesitações,
Pôs-se logo a pastar.
De cardes viu a falta, olhando-a indiferente,
Pois muito bem sabia
Que era ser exigente.
Ele, a gema, o primor dos burros mansarrões,
Negar-se a dispensar, ao menos por um dia,
O freqüente manjar, que ainda o fartaria.
Em mais ocasiões.
Criado em tais doutrinas,
Sabias as paixões más vencer de quando em quando,
E, assim, dizendo adeus às tentações mofinas,
Continuou pastando.
O cão, esse, coitado! À força de jejum
Viu-se obrigado a ter menor filosofia;
Chegou-se ao companheiro e, sem rodeio algum,
Disse-lhe francamente: "amigo, eu tiraria
De certo o meu jantar
Podendo-lhe chegar.
Tenho deveras fome, e a fome é um tormento;
Dá-me um minuto só, faze-me este favor.
Abaixa-te um momento."
O burro, nem palavra. Aquilo, era, talvez,
Ataque de surdez;
Ou estaria pensando, inconscientemente:
Ser caridoso é bom, mas é muito melhor
Calar e ir dando ao dente.
Volvido largo tempo, achou-se mais disposto,
O burro a responder. Vê-se que a digestão
Lhe despertava o gosto,
De dar a taramela. Assim falou ao cão:
"Amigo ouve um conselho;
Deves saber esperar e deves ter paciência.
Lições da experiência
Que eu sei, já por ser velho.
Mais um momento, e breve,
O nosso dono desperta. O seu dormir é leve,
E tão depressa acorde, é ponto certo que há de
Cuidar logo de ti, tratando-te de sorte,
Que fiques como um frade."
Nisto, um lobo feroz, pronunciando morte,
Aparece, esfaimado.
O burro, transtornado,
Aflito, chama o cão e pede que lhe acuda.
Outra vez se repete a mesma cena muda,
Até que o cão responde: "ouve um conselho, amigo:
Deita a fugir depressa, enquanto o nosso dono
Acaba de dormir. Ele tem leve o sono,
E, logo que acordar, acode sem demora
A livrar-te do perigo.
Quem sabe até se agora
Já sonhará contigo?
Bem sabes que o viver tem cenas variadas,
No mundo, anda-se exposto a muitas más venturas;
Se o lobo te apanhar, levanta as ferraduras
E quebra-lhe as queixadas."
Ao burro este aranzel de pouco aproveitou,
Pois, durante o sermão,
O lobo o devorou,
Sem dó nem remissão.
É bom, convém saber,
Uns aos outros valer.
Moral da Estória:
É mister o próximo ajudar.
Jean de La Fontaine
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