O burro e seu dono

O burro de um jardineiro
Queixas vivia a fazer,
Porque o forçavam a erguer-se
Mui antes do amanhacer.

"Os galos (dizia ao Fado)
São por aqui matinais;
Mas, por muito que madruguem,
Eu inda madrugo mais.

E a que fim? Para ao mercado
Hortaliças conduzir;
Justo motivo, por certo,
De encurtarem-se o dormir!"

Compadecido da queixa,
Dá-lhe o Fado outro senhor;
Passa o burro dorminhoco
Ao poder de um surrador.

Em breve o peso das peles
E seu cheiro repelente,
Incomodam sobremodo
Nosso burro impertinente.

"De meu senhor jardineiro
(Dizia) tenho saudade;
Ao menos, se bem me lembro,
Me dava mais liberdade.

Se ele virava a cabeça,
Eu, às ocultas, mascava
Alguma folha de couve,
Que nem ceitil me custava.

Mas com este, nem chorume!
E se pinga alguma cousa,
É só música de arrocho
Num triste, que não repousa."

Conseguiu mudar de dono;
A um carvoeiro tocou.
Novas queixas; mas a Sorte,
Acesa em ira, bradou:

"É demais! Pois este burro
Há de estar a importunar-me,
E meu tempo e meu cuidado
Como cem réis ocupar-me!

Pensará que a seus negócios
Devo só dar atenção;
Que é só ele o descontente
Com a sua condição?"

Pensava bem o Destino,
Assim é que somos feitos!
Seja qual for nosso estado,
Nunca estamos satisfeitos.

Que a nossa vida presente
É sempre a pior - julgamos;
Aspirando a melhorá-la,
Com rogos o céu cansamos.

Inda que Jove atendesse
A todos e cada qual,
Inda assim o aturdiria
Queixa e lamúria geral. 

Jean de La Fontaine

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