O veado e a vinha

Certo dia um veado,
Tendo à morte escapado,

Livre ficando e a salvo de perigo,

Graças ao pronto abrigo

De uma videira de elevadas cimas,
Como as que dão somente em certos climas,

Julgou finda a caçada,

Por chamarem os cães à retirada,
Só à matilha ouvindo atribuir
O terem-no deixado escapulir

Liberto já do susto,
Pôs-se a roer o arbusto
A vinha benfeitora,

Que amparo, couto e salvação lhe fôra.

Extrema ingratidão,

Própria de um mal formado coração!
Ouvindo-o mastigar, volta a matilha;

Segue a indicada trilha,

Expele-o do esconderijo de folhagem,

E talhando carnagem,

Com afilados dentes o trucida.

Perde o veado a vida,

No mesmo sítio; e em transe de agonia:

"Bem mereci (dizia)

A morte. Foi justiça rigorosa.

Que lição proveitosa

Para os ingratos meu castigo encerra!"

E baqueou por terra.

Estraçalham-no os cães num só momento,
E perde-se nos ares o lamento,

Que na hora da morte
Dirige contra a sorte,

E contra os caçadores, que, aos gemidos,

Vêm os sítio atraídos.
Eis o fiel retrato

De quem perverso, ingrato,
O teto hospitaleiro profanou,

Que asilo lhe prestou. 

Jean de La Fontaine

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