O lobo e o cão

Em manhã nublada, e fria,
Um velho Lobo esfaimado
Sua sorte maldizia,
Que tamanho era o cuidado
Dos guardadores do gado;
Eis que mui gordo, e mui rédeo
Vê vir um Gôzo anafado
Que lhe não faria tédio
Se o comesse, mas temia
Pelo estado em que se via
Combater, e sair mal,
E a manhã por brusca, e fria
Ter questões não permitia;
Eis prudente em caso tal,
De projetos variando,
Fez-lhe grande cortesia
Mui submisso elogiando
Sua formosa figura,
Asseio, porte, e gordura;
A louvores tais sensível
Torna-lhe o Gôzo aprazível:
"Se esta vida, esta ventura
Gozar queres, novo amigo,
Deixa o campo, e vem comigo,
Viverás sempre em fartura,
Verá sempre de comer,
Tenros ossos que roer
De perú, frangão, perdiz."
Eis o atalha o Lobo, e diz:
"Saber quero, caro amigo,
O que é preciso fazer,
Para tanta dita obter?"
"Não o sabes? Eu to digo,"
Lhe responde o Gôzo honrado,
"Deves ter muito cuidado
Em guardar a toda a hora
A porta do teu patrão,
Vedar qu'entre algum ladrão;
Sempre ladrar aos de fora,
E aos de casa fazer festa;
Mais dizer-te ainda me resta,
Que também não será mau,
Que não corras sobre os gatos,
Quando lamberes os pratos,
Que pode vir algum pau
E fazer-te o catatáu;
Deves também ter cuidado
Em ser em casa asseiado;
Que se o que eu digo fizeres
Evitará desprazeres,
Verás o rosto à ventura
Sem trabalho, e com fartura."
O bom Lobo do que ouvia
De prazer pranto vertia,
E impaciente d'alvoroço
Dia ao Gôzo: "voemos,
Por ver se chegar podemos
Hoje inda às horas do almoço;
Mas espera, amigo caro!
Eu agora é que reparo!
O que tens tu no pescoço?"

CÃO
Quem eu? Isto não é nada.

LOBO
Não é nada! Isso é asneira!

CÃO
Quase nada, brincadeira.

LOBO
Pois daqui não movo um pé
Sem saber isso o que é.

CÃO
É o calo da coleira.

LOBO
Que? Tu vives em prisão?

CÃO
Vivo sim, isso que tem?
Como, bebo, passo bem,
E amigos meus todos são.

LOBO
Pois regala-te por lá,
Que eu antes sem sujeição
Quero pobre viver cá
Sofrendo fome, e lazeira,
Do que assistir na cidade,
Bem que passe à cavalheira,
Tendo presa a liberdade.

Nisto dando uma carreira
Para o bosque mais vizinho
Foge, e deixa o cão sozinho:
Que dando atenção severa
Ao que de ouvir acabava,
Conheceu bem que não era
Tão feliz como julgava. 

Jean de La Fontaine

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