O gato e o rato

Eram quatro animais diferentes:
Come-queijo - gatorro ardiloso,
A coruja que é pássaro triste,
Trinca-malhas, ratinho guloso,
E a doninha de longo corpete;
- Tudo gente de gênio rixoso.

Frequentavam o tronco, já podre,
D'um pinheiro que o tempo escavou.
Foram vistos. À noite, um sujeito
Forte rede ao pinheiro enlaçou.
Come-queijo, à procura de caça,
Nesse dia (infeliz!) madrugou.

Inda as últimas sombras da noite
Não haviam fugido ante o dia,
Eis o - gato, caído na rede,
A miar, já prevendo a agonia;
E o ratinho, - por ver o inimigo
Nesse transe - a exultar de alegria.

Disse o pobre do gato: Amiguinho!
Já me destes tão firmes sinais
Da bondade que em todos os tempos
Aos de nossa progênie mostrais,
Que do laço, em que, néscio, ei caído,
Eu confio, soltar-me venhais.

Por virtude de santo direito
A vós só, por amor singular,
Sempre quis como a luz de meus olhos,
Vossos dias buscando poupar.
Do que fiz rendo graças aos deuses,
E nem disso me resta pesar.

Como gato devoto, eu saía
À oração qual é d'uso entre nós;
Nesta rede caí; minha vida
Nas mãos tendes; rompei-me estes nós!"
- "E que paga virá (volve o rato)
De meus grandes serviços após?"

"D'estas unhas dispondes à vontade,
Que eu vos juros, em perpétua aliança,
Amparar-vos, velando constante
Sobre vós; dar-voz paz, segurança,
Para ver-vos - sereno e tranqüilo
Desfrutando completa abastança.

Comerei a senhora doninha
E de dona coruja o marido."
"Ó pascácio; (replica-lhe o rato)
Vós julgais-me de senso despido?
Suporíeis, se fosse livrar-vos,
Que eu tivesse o juízo perdido."

Seu refúgio, em seguida, buscando,
Vê-lhe à boca a doninha postada.
Sobe mais; antepõe-se-lhe o môcho;
Bate presto em veloz retirada,
Vendo em tríplice e instante perigo
Sua triste existência arriscada.

Atendendo ao mais próximo risco,
Foi as malhas da rede roer;
Solta um nó; solta dois; solta muitos;
Té que a todos consegue romper,
E dos laços que o tinham retido
Ao tartufo, afinal, desprender.

Neste ponto aparece o da rede;
Fogem ambos; cada um de seu lado.
Pouco tempo depois mestre gato
Viu o rato, que um tanto afastado,
Vigiava; e lhe disse: "A meus braços,
Vinde irmão, para mim tão prezado.

Ofendeis-me, mostrando receio,
Qual se eu fosse mortal inimigo;
Não risquei da memória a bondade,
Que inda há pouco provastes comigo;
Pois, abaixo de Deus, vosso esforço
Me salvou a existência em perigo."

Torna o rato: "E julgais que me esqueça,
Vosso instinto e feroz propensão?
Há tratados que forcem um gato
Por alguém a mostrar gratidão?"

É precária e sem base a aliança,
Que é ditada por força ou pressão. 

Jean de La Fontaine

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